Foto de Abdullah Yaqoob, vítima de bomba cluster - dos arquivos da DCA
A entrevista abaixo foi realizada pelo Instituto Humanitas em 09/2009 e publicada online e na Revista do Instituto Humanitas Unisinos, N. 306, Ano IX, São Leopoldo, 31.08.2009, ISSN 1981-8469, p. 52-55.
O conceito de segurança precisa ser revisto. É preciso focar “na segurança humana que conceba a soberania como a responsabilidade dos estados de protegerem os cidadãos, e não suas armas”
Por Patrícia Fachin
As bombas cluster também conhecidas como bombas cacho “podem funcionar como minas terrestres”, escreve Gustavo Oliveira Vieira, em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Isso porque, elas se abrem e se espalham antes de tocar o solo, difundindo o impacto das explosões. Ao se abrirem no ar, explica, “projetam dezenas ou centenas de submunições que passam a funcionar ao modo de granadas, que por sua vez deverão explodir ao tocaram o solo”. Contrário à fabricação das bombas cluster, o professor frisa que as taxas de falha são altíssimas. Como exemplo, cita os quatro milhões de submunições jogadas por Israel no sul do Líbano, em 2006. Segundo ele, estimativas mostram que aproximadamente um milhão falhou.
O Brasil é produtor, armazenador e exportador dessas armas e essa é uma das justificativas para que o país não apoie negociações internacionais de combate a esse modelo de armamento. Na opinião de Vieira, o impedimento brasileiro está relacionado ao comércio internacional. “Foi liberada, ano passado, uma exportação dessas armas com mais de meio bilhão de reais”, informa. Segundo o pesquisador, “a delegação brasileira inclusive no ano passado chamou um diretor da indústria fabricante destas armas para a negociação da Convenção sobre Certas Armas Convencionais CCAC – dando mais um indício que a preocupação primordial pode ser comercial e econômica”.
Para ele, iniciativas como essa representam uma afronta aos princípios constitucionais que devem guiar a política externa brasileira. “A Constituição brasileira no seu artigo 4º estabelece como princípios a defesa da paz, a prevalência dos direitos humanos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Esses princípios não são opcionais, possíveis de aderir por conveniência, eles deveriam vincular cada uma das decisões do Brasil nas relações internacionais”, complementa.
Gustavo Oliveira Vieira é graduado e mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Além de docente na Unisinos, atualmente, também é professor do Centro Universitário Franciscano – Unifra. Dedicado a estudos relacionados ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, Vieira apresentará a palestra Paz por meio do Direito Internacional: a Convenção de Oslo sobre bombas cluster e a (crítica) posição brasileira, na quarta-feira, 02-09-2009, das 9h às 11h, no Auditório Maurício Berni, na Unisinos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as características e os perigos causados pelas bombas cluster? Elas podem ser comparadas a minas terrestres?
Gustavo Oliveira Vieira - As bombas cluster – também chamadas de submunições cluster, bombas cacho ou de fragmentação – são artefatos bélicos jogados do ar ou do solo por meio de um contêiner, e, ao se abrirem no ar, projetam dezenas ou centenas de submunições que passam a funcionar ao modo de granadas, que por sua vez deverão explodir ao tocarem o solo ou o alvo. O problema é que as taxas de falha são altíssimas (das quatro milhões de submunições jogadas por Israel no sul do Líbano em 2006, estima-se que um milhão falhou), a imprecisão é grande (varia conforme o tipo de solo, inclinação, vento, pressão, manutenção do artefato, etc.) e o poder explosivo é muito grande, muitas com potencial para penetrar blindados.
Dessa forma, podem funcionar como minas terrestres, gerando um efeito indiscriminado, durante e após os conflitos, e acionadas pela própria vítima.... O problema é que os Estados armazenam bilhões destas submunições, e não havia, até a Convenção de Oslo, aberta para assinaturas em dezembro último, um instrumento legal vinculante que regulasse este armamento.
Gustavo Oliveira Vieira - O Brasil é produtor, armazenador e exportador deste tipo de arma. Parece extremamente lógico que os militares não queiram abrir mão de nenhuma arma que possa ter utilidade militar, ainda que marginal. Mas a decisão é do Itamaraty. E a justificativa variou.
Primeiro o MRE questionou a legitimidade do processo de Oslo de negociação, que o único fórum correto seria aquele da Convenção sobre Certas Armas Convencionais (CCAC). No entanto, isso jamais impediu o Brasil de ser parte de tratados internacionais. Tanto as Convenções de Genebra que o Brasil promove como o Tratado de Ottawa sobre erradicação das minas terrestres foram negociados fora da ONU. Mas tem todo apoio da ONU, do próprio Secretário-Geral, das suas agências, enfim, e depois de fechados retornam à ONU para operacionalização. Ora, as negociações no âmbito da CCAC só ocorrem por consenso – e consenso com os Estados membros da CCAC não tem condições de enfrentar problemas humanitários. Se um se opõe, não sai, ou fragiliza o texto – foi o que ocorreu com o tema das minas. Ademais, é bem menos universal, pelo número de Estados Partes que a Convenção de Ottawa, por exemplo, que conta hoje com 156 Estados, enquanto a CCAC não chegou a 100.
Depois do texto do tratado de Oslo, concluído nas negociações, o MRE o rechaçou por considerar o tratado de Oslo discriminatório, pois não considera bomba cluster quando combina sistemas de segurança e precisão do tipo guiadas por sensores, autodestruição eletrônico, autodesativação,com menos de dez submunições e mais de 4 quilos cada submunição. Nós, como campanha internacional pela erradicação bombas clusters (CMC), como sociedade civil organizada participando do processo, buscamos um tratado sem qualquer exceção – que erradicasse todas. O Brasil não quis participar das negociações. De toda forma, realmente essa exceção exige mecanismos importantes para amenizar o problema humanitário e banir todas as submunições clusters até hoje utilizados.
O que não é dito pelo Itamaraty é a questão do comércio internacional. Foi liberada, ano passado, uma exportação dessas armas com mais de 500 milhões de dólares. Talvez a causa maior. O que aponta à direção de um pragmatismo amoral da política externa brasileira.
A meu ver, isso representa uma afronta aos princípios constitucionais que devem guiar a política exterior do Brasil. A Constituição brasileira no seu artigo 4º estabelece como princípios a defesa da paz, a prevalência dos direitos humanos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Esses princípios não são opcionais, possíveis de aderir por conveniência, eles deveriam vincular cada uma das decisões do Brasil nas relações internacionais.
IHU On-Line - Os militares brasileiros alegam que não utilizam essas bombas. O que justifica, então, tanta resistência em banir a fabricação desses armamentos?
Gustavo Oliveira Vieira - Os militares brasileiros não vão à guerra para defender o Brasil há mais de 60 anos. Por isso também não usam essas armas. E está certo, faz parte da nova lógica internacional de cooperação, militares preparados para apoiar a construção da soberania na Amazônia, missões de paz, crises internas, enfim. Ainda assim, na lógica militar não faz sentido abrir mão de qualquer arma. Mas quem decide não pode utilizar uma lógica militar, mas olhar o todo. Decidir isso é considerar que todos podem agir também dessa maneira. E como líder mundial, o Brasil oferece um exemplo que puxa outros países consigo. É uma questão de política interna, voltada para o mundo. Será uma política belicosa ou pacifista?
Consenso absoluto é infelizmente impossível. Veja o caso das minas terrestres antipessoal. Dezenas de milhões de minas plantadas planeta. Também são armas de pobres, como se diz, matando pessoas mais pobres ainda em quase cem países. E alguma utilidade militar as minas teriam. Agora, a produção, caiu de 50 países na década de 90 para menos de dez, dois países apenas usaram no último ano – sendo que chegaram há muitas dezenas. Mas quem mais tem utilizado são as guerrilhas – os atores armados não-estatais. O trabalho está dando muito resultado. Dezenas de milhões foram destruídas para implementação do Tratado de Ottawa – veja o sentido preventivo, parou a produção, destruíram estoques...o futuro está sendo preservado, e isso é difícil de contabilizar.
Se o consenso é impossível, um passo a frente de cada vez é, sem dúvida, necessário.
IHU On-Line - O Brasil tem uma forte campanha contra o desarmamento e, ao mesmo tempo, se opõem ao banimento das bombas cluster. Isso é uma contradição?
Gustavo Oliveira Vieira - A meu ver sim. O Brasil, e o MRE, tem posições exemplares em muitos aspectos. Veja o caso do desarmamento nuclear. O Brasil, a partir da embaixada para desarmamento em Genebra, com o Embaixador Soares e o Conselheiro Julio Laranjeira, está tentando um programa de ação para o desarme nuclear. Algo fundamental para a própria espécie humana. No campo dos direitos humanos o Brasil é parte da grande maioria de instrumentos internacionais, tendo se submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos (coerente com o que diz a Constituição e inclusive o artigo 7º da ADCT que indicava que o Brasil propugnaria por um tribunal internacional de direitos humanos). Falta esse passo agora, das bombas cluster.
Ainda assim, o Brasil tem positivamente tentando negociar um protocolo no âmbito da CCAC para regular bombas cluster. Isso não resolverá o problema humanitário, e por isso não é suficiente, mas é muito mais do que nada. Será um passo positivo, se sair.
Gustavo Oliveira Vieira - O deputado Fernando Gabeira é uma voz lúcida, mas, infelizmente, minoritária no Congresso Nacional. Há milhares de projetos de lei. A proposta dele tem muito a ver com a necessidade de se pautar o tema no Congresso. É preciso que se debata o tema, se leve à esfera pública.
Sobre o armamentismo, cada região e cada país têm um contexto interno e internacional muito peculiar. No caso do Brasil, o aumento do orçamento militar tem, em grande parte, a ver com o sucateamento dos instrumentos e salários. É preciso meios, mas no século XXI penso que conhecimento é tão ou mais importante para se garantir soberania quanto as armas. Um exemplo é o caso da Amazônia. É óbvio que nosso conhecimento e, consequentemente, soberania sobre a Amazônia é ainda precário. Culpa da falta de armas? Não, certamente que não, mas da política interna e da falta de conhecimento que temos da região, das espécies e até das pessoas que moram lá.
A concepção de soberania para o século XXI mudou. Não pode mais ser a westfaliana do século XVII. Será que as armas não têm hoje uma importância mais econômica que de segurança, efetivamente? Senão, quais seriam os inimigos do Brasil?
O próprio conceito de segurança precisa ser revisitado. Da segurança nacional, de meados do século XX, é preciso se focar hoje na segurança humana que conceba a soberania como a responsabilidade dos estados de protegerem os cidadãos, e não suas armas.
IHU On-Line - Como construir a paz por meio do Direito Internacional? Isso é possível, considerando que os países apresentam interesses diferentes?
Gustavo Oliveira Vieira - As coletividades sempre terão que apontar interesses diferentes. Isso é fundamental para uma construção democrática. Ainda que a democracia no sistema internacional seja um dos seus grandes défits.
Por outro lado, a construção da paz por meio do direito e por meio do direito internacional é uma resposta que muitos autores renomados se debruçam (Kelsen, Bobbio, Höffe, Habermas, entre muitos outros). Sabemos como não é. E certamente não é pensando apenas nas questões internas. Os estados precisam passar a definir suas políticas internas e internacionais tendo como referência a construção de uma sociedade mundial.
Análise clara e objetiva.
ResponderExcluirNão há mais como fazer vistas grossas à falta de vontade, de intenções e atitudes quanto aos desafios políticos que os líderes mundiais de hoje tem nas mãos, seja na questão de movimentos pelas soluções para o desenvolvimento humano, desarmamento e, atualmente, para os problemas do clima, o que ficou muito claro na falta de posicionamentos na COP15.
Enquanto interesses egóicos e imaturidades perdurarem nas decisões políticas e econômicas, deveremos lidar de forma lúcida a implantar aos poucos o que é melhor para o mundo, e consequentemente para nós, começando pela política interna, que, no Brasil, está uma lástima.
Leandro Guiraldeli
Pois é Leandro, há debates importantes sobre política externa que precisam ser alavancados à esfera pública, sob pena de sofrermos impactos relevantes sem termos a possibilidade de nos manifestarmos.
ResponderExcluirAbraço!
Gustavo