sexta-feira, 5 de outubro de 2018

constituição brasileira, 30 anos depois


CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA, 30 ANOS DEPOIS...

Gustavo Oliveira Vieira
(Doutor em Direito. Autor do livro “A formação do estado democrático de direito”, Reitor da Universidade Federal da Integração Latino Americana em Foz do Iguaçu, Paraná)

          5.10.2018. Passaram-se 30 anos da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, que foi “apelidada” de “a Constituição Cidadã”, por Ulisses Guimarães. Tempo propício para um balanço de suas conquistas, efetivadas e interrompidas, e desafios porvir. Sobretudo num período que se percebe que espectros que ameaçam as conquistas democráticas rondam o Brasil. Quais lições, ganhos, quais perdas, quais disputas estão e permanecem em jogo?
          A Constituição é o espaço normativo, ápice da pirâmide da hierarquia das normas, onde consta a organização dos poderes e das liberdades de nossa sociedade. Antes de indicar algumas respostas, cabe retomar o sentido originário da Constituição e do constitucionalismo – que tem tradições diversas e por vezes é usado no plural, constitucionalismos. Mas todo constitucionalismo converge num ponto: a separação de poderes como fórmula para contenção do despotismo, na síntese propiciada por Montesquieu em “O Espírito das Leis”. Em nosso caso, três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário, diferenciados funcionalmente para administrar, legislar e julgar). Mesmo que suas realidades estejam longe das utopias republicanas, funcionam, independentes e em condições de tomadas de decisões autônomas entre si.
          Nesses 30 anos o Brasil cresceu expressivamente. De 140 para mais de 200 milhões de pessoas (45%). A mortalidade infantil foi reduzida em mais de 60%, e a expectativa de vida dos brasileiros aumentou em 10 anos, o analfabetismo reduziu. São alguns indicadores a evidenciar que, apesar de tantos pesares, algo significativo em termos de construção cidadã se concretizou. Sem falar nas eleições periódicas desde então, com ajustes nos regramentos eleitorais com vistas a filtros e transparência (como no financiamento).
         De outro lado, problemas históricos seguem. Desigualdade social como chaga brasileira e latino-americana – marca da persistente violência estrutural. Um nível de violência direta epidêmico. Ainda que a transparência sobre as decisões públicas tenha gerado um crivo democrático mais qualificado na opinião pública, a coisa pública ainda sendo tratada, em muitos casos, como res nullius – como coisa de ninguém e passível de apropriação privada.
          Evidente que a força normativa da Constituição, como afirmou Hesse, aquilo que viabiliza a concretude do texto, passa por mais que registrar aspirações no papel. Depende também da compreensão de sua essência (já alertava Lassalle). Mas certamente passa pela sua legitimação pela sociedade civil, a opinião pública ou a esfera pública.
          Um balanço efetivo demandaria um livro, não um texto de opinião. E também é verdade que os desafios da Constituição brasileira em vigor são para séculos, não realizáveis em poucas décadas. Mas cabe registrar que estágios foram superados, à democracia e à cidadania. E certamente é, a nossa Constituição, um garante fundamental contra as ameaças despóticas que assombram nossos tempos e as sombras do horizonte.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

A FORMAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: O Constitucionalismo na Emergência da Sociedade Civil


Gustavo Oliveira Vieira
Uma das vigas estruturantes do Estado Democrático de Direito está calcada na emancipação da sociedade civil. Ainda que a narrativa sobre a formação do Estado permita o resgate do seu fio condutor através de diversos percursos, aquela relacionada à perpectiva e ao papel do Estado em relação ao “povo” é uma das trajetórias que melhor demonstra a ressignificação estrutural do universo político e jurídico até os dias atuais. Por isso, cabe investigar o espaço político-jurídico  historicamente conquistado, reservado ou alocado à sociedade civil no Estado Democrático de Direito.
O livro, publicado pela editora UNIJUÍ em 2016, que contou com apoio IMEA-UNILA-PROEDIT, discorre sobre a formação do Estado constitucional em sua variante “Estado Democrático de Direito”, nas diversas matizes, objetivando problematizar a relação Estado-Sociedade no que tange aos seus axiomas basilares (paz, liberdade, soberania, direito, nacionalidade, democracia e igualdade). Os diversos adjetivos que servem à definição do “Estado” são aos poucos esclarecidos para descortinar como as diferentes funções são integralizadas em favor da emancipação da sociedade civil. Sociedade esta inicialmente restrita à classe burguesa, que aos poucos vai sendo ampliada ao universo de indivíduos vinculados ao Estado pela cidadania ou nacionalidade.
Dessa forma, a Democracia passa a ser compreendida como elemento articulador entre Direito e Política, e, portanto, também como o mecanismo que funda e sustenta a legitimidade do sistema jurídico e religa a validade à faticidade da realidade social e dos valores éticos e morais socialmente mediados para tornarem-se, a seu tempo, validamente jurídicos. Ou seja, o Direito como um sistema vinculante, pelo qual a sociedade estabelece a si mesmo, e a este se submete. Assim, para além das tradicionais abordagens dos planos de existência, validade e eficácia do Direito, dá-se uma atenção central agora ao problema da legitimidade do Direito, como característica que o integra.
Para cumprir essa tarefa, o texto é dividido basicamente em duas grandes partes, primeiro “A Gênese do Estado Liberal: conjugação da paz e da liberdade”, depois, um segundo capítulo com “O Estado Constitucional na Emancipação da Sociedade Civil”, buscando explanar de modo consistente a disputa em marcha em torno do papel do Estado perante as diferentes ideologias e teorias.

VIEIRA, Gustavo Oliveira. A Formação do Estado Democrático de Direito: o Constitucionalismo na Emergência da Sociedade Civil. Ijuí: Unijuí, 2016.

Abaixo o sumário:


quinta-feira, 30 de julho de 2015

CONSTITUCIONALISMO NA MUNDIALIZAÇÃO


              Gustavo Oliveira Vieira
Implicações Constitucionais da Mundialização
Quais são os impactos da mundialização sobre o constitucionalismo? Qual o modelo de Estado constitucional adequado em tempos de globalização? Qual é a direção, do ponto de vista jurídico-político, que se deve equacionar a abertura do Estado no cenário pós-nacional? Diante das ameaças hegemômicas e de dominação, quais são os referenciais que perpetuam o constitucionalismo como base para um projeto civilizatório pautado na emancipação social deste ambiente que transcende as cercanias estatais? Foram estas indagações que pautaram a pesquisa que resultou no livro “Constitucionalismo na Mundialização”.
A investigação parte da premissa de que os desafios contemporâneos do constitucionalismo vêm sendo redimensionados para abranger as dinâmicas próprias do cenário pós-nacional. Isso não significa que os reptos inaugurais do Estado constitucional, da emancipação do jurídico em relação ao campo político, tenham se esgotado, mas, concomitantemente, novas tarefas apresentam-se, como as questões socioambientais e democráticas, emaranhadas na diluição das fronteiras entre o doméstico e o exterior, o interno e o internacional. Tudo isso, amplamente catalisado pelos processos multidimensionais e ambíguos da mundialização.
A transnacionalização do capitalismo acompanhada das mudanças na produção e financeirização da economia, sob o aporte das novas tecnologias, instaura complexidades de mais profundo calado nas dinâmicas sociais, políticas e jurídicas. Engendra-se, com isso, uma situação de crises – tanto do Estado quanto da Constituição – e de transformações em que as respostas institucionais tecidas no Estado nacional constitucional demonstram claro esgotamento, sobretudo na medida em que já não se crê ou não se confia mais nas expectativas que originaram o seu modelo – e por isso a pertinência de se falar na transição paradigmática do Direito.
O fato de o arquétipo institucional forjado pelo Estado nacional estabelece demarcações espaciais para a organização política, jurídica e cultural da comunidade que passam a demonstrar uma certa exaustão. O novo cenário impõe uma revisão nos pressupostos do Estado Democrático de Direito, notadamente no que diz respeito às condições de legitimação das decisões políticas além das margens nacionais – originalmente blindados às deliberações do tipo democráticas.
Dito de outro modo, se o zeitgeist desenhado pela mundialização redimensiona espacial e temporalmente a faticidade contemporânea, acarretando uma verdadeira implosão dos pilares que amparam o Estado em seus pressupostos de legitimidade – na medida em que os procedimentos democráticos efetivamente não alcançam a composição de discussões, decisões e deliberações que se colocam além do Estado nacional – o mérito das decisões falham na sustentação democrática. Nesse contexto, o Estado tende a ser cada vez mais um co-decisor em espaços deliberativos extranacionais, cuja opção e pertinência sobre as tarefas para implementação doméstica colocam-se à margem da esfera pública democrática.  É em torno desse quadro que se esculpiu a questão que orienta a pesquisa.

Direitos Humanos, Sociedade Civil e Democracia no cenário pós-nacional
A relevância deste assunto emerge da faticidade de uma sociedade em processo de mundialização, em contraponto a um paradigma jurídico-constitucional forjado para um Estado do tipo nacional, que precisa dialogar com perspectivas teóricas interdisciplinares para tornar possível uma nova abordagem. Afinal, o sistema internacional dominado pela política do mercado demanda um maior equilíbrio que deve ser posto pelo Direito, com evidentes lacunas do ponto de vista da democracia, a ser composto pela maior participação da Sociedade Civil.
Tudo isso vem a estabelecer novos desafios ao Direito como ciência, revisitando a relação com a Moral (Paz) e a Política (internacional) a partir de proposições à teoria as fontes (internacionalização do Direito Constitucional e Constitucionalização do Direito Internacional) que concebam um olhar contemporâneo sobre a relação entre o Direito e a Democracia, compreendidos também sob novas transposições da geografia, ou melhor, o Direito e da Democracia sob impacto da desterritorialização (da sociedade, do mercado, da cultura e da política).
Nesse cenário, pertine compreender o fenômeno mundialização, sintetizado na formação de um cenário pós-nacinal que se desvela como zeitgeist contemporâneo, em sua complexidade e ambiguidade para, daí, revisar a dupla face do impacto produzido no constitucionalismo, que vai da internacionalização do direito constitucional à constitucionalização do direito internacional.
Segundo o prefácio de Bolzan de Morais, “[s]ó assim este trabalho se construiu, como um texto que procura reconstruir as circunstâncias que envolvem as transformações sofridas/experimentadas pelo cenário político-institucional contemporâneo, especialmente no campo dos direitos humanos e do constitucionalismo – e suas imbricações intrínsecas -, bem como projetar as possibilidades de as conquistas civilizatórias servirem como meios efetivos e eficazes para a construção de uma “alter”sociedade mundial demarcada pela “paz”, pelos “direitos humanos” e pela “democracia” em um processo de “vir-a-ser” aberto e inacabado, como Gustavo sustenta”.
Estrutura e Origem
O texto é desenvolvido em duas partes, cada parte com dois capítulos. A primeira parte trata da (I) “Formação do Cenário Pós-Nacional”, que aborda de início (1) “Uma leitura crítica da mundialização”, subdividida em três subcapítulos, e no segundo capítulo enfrentando o tema da (2) “Altermundialização”, inicialmente com a questão dos (2.1) “Direitos Humanos Universais” e em seguida aprofundando a questão da (2.2) “Sociedade Civil (Global)”. A segunda parte tem como título as (II) “Implicações Constitucionais da Mundialização”, cujo primeiro capítulo, terceiro do livro, aborda o (3) “Redimensionamento do Constitucionalismo”, de um lado enfrentando a (3.1) “Internacionalização do Direito Constitucional”, à luz dos autores Mirkine-Guetzévitch, Häberle, Maziau, Pernice, Teubner, Canotilho e Marcelo Neves, para, em seguida, enfrentar a questão da (3.2) “Constitucionalização do Direito Internacional”. Com isso, estão dadas as bases para o quarto e último capítulo: (4) “O Constitucionalismo pós-nacional”, que produz uma síntese das críticas e promove uma revisitação à teoria constitucional, propondo a busca por novas fontes de legitimidade, traduzidas com densidade teórica e proposições práticas. 
O livro “Constitucionalismo na Mundialização: desafios e perspectivas da democracia e dos direitos humanos”, publicado pela Editora da UNIJUÍ, ano 2015, 344p., é resultado da tese de doutoramento de Gustavo Oliveira Vieira, defendida em 2012 no Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS, com período sanduíche na University of Manitoba, Canadá, e orientada e prefaciada pelo professor Dr. José Luis Bolzan de Morais, cuja defesa contou com a presença dos professores José Luiz Quadros de Magalhães(PUC-MINAS/UFMG), Alfonso de Julios-Campuzano(USevilha), Paulo Márcio Cruz (UNIVALI) e Lenio Luiz Streck (UNISINOS), além do orientador. Entretanto, cabe salientar que a pesquisa de fato iniciou muito antes, no perído da iniciação científica em 1998, sob o título “A Constitucionalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos”, e daí teve uma série de desdobramentos, cujo desfecho foi a tese.
Uma leitura estimulante, não apenas sob o aspecto técnico, mas também ético”. (Fábio Konder Comparato).

VIEIRA, Gustavo Oliveira. Constitucionalismo na Mundialização: desafios e perspectivas da Democracia e dos Direitos Humanos. Ijuí: Unijuí, 2015.

terça-feira, 24 de março de 2015

Direito e Literatura, ou Relações Internacionais e Literatura...


A literatura apresenta uma narrativa sobre o Direito, e suas variadas implicações sociais, compondo uma interface riquíssima para ser explorada. É com isso que se justificam as pesquisas do Direito e Literatura.

É nessa linha que Lenio Streck afiança que O Direito contado a partir da Literatura possibilita "que se desenvolva um novo modo de pensar o direito e, sobretudo, de compreender os fenômenos sociais no interior das culturas jurídica e literária. Traz ao conhecimento do público obras que marcaram gerações, levantando questões e proporcionando debates sobre temas da atualidade que se relacionam com obras da literatura".  

Por conta disso, disponibilizo aqui algumas participações no Programa Direito e Literatura, projeto originalmente criado pelo Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ), o programa é produzido e coordenado por André Karam Trindade, sendo transmitido pela Fundação Cultural Piratini (TVE/RS) e pela TV Justiça.

Alguns dos programas poderiam se chamar também Relações Internacionais e Literatura, como estes disponibilizados abaixo.

O programa que segue debatemos o livro "O Prisioneiro" de Érico Veríssimo, onde fica registrado o pensamento político pacifista do escritor, na linha do que já foi postado anteriormente, exibido em 18 de outubro de 2009.




Seguindo a trilha de Érico Veríssimo, abaixo o debate sobre a obra "O Senhor Embaixador", mediado pelo professor Lenio Streck e debatido com Sergius Gonzaga e Gustavo Vieira.



O programa abaixo debatemos a obra "Guerra e Paz" de Leon Tolstoi, exibido em 10 de abril de 2011.


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Elementos do Sistema Constitucional Canadense

Foto de Cassia Mota, Ottawa, 1 fev 2011.

Gustavo Oliveira Vieira

O Canadá é uma referência para muitas sociedades, por seus baixos níveis de violência, distribuição de renda equilibrada, sistemas de saúde e educação citados como modelo, e aberto para a interculturalidade, atendo para as questões internacionais e praticante da segurança humana; é um dos países que melhor se posiciona no índice de desenvolvimento humano da ONU, e, uma das grandes economias do planeta. Ao mesmo tempo, o país não se fechou ante a onda de imigração, aplicando um conceito de inclusão social pós-nacional com comprometimento real em relação aos problemas além de suas fronteiras. É o segundo maior país em território do planeta, com uma população de apenas 34 milhões de pessoas que se concentra em mais de 80% na faixa de terra a 100 quilômetros da fronteira com os EUA, pertencentes basicamente a três nacionalidades distintas – quebecois (da Província de Quebec, de idioma francês), anglocanadenses (das demais províncias, idioma inglês) e aborígenes (que são de diferentes nações indígenas, grupos das populações nativas com aproximadamente três milhões de pessoas, também denominados de “primeiras nações” – first nations).

A “Constituição” canadense: um pouco de história

Os vikings nórdicos foram os primeiros não nativos a pisarem no solo canadense. Mas não conseguiram se fixar e manter a ocupação do território. A posterior colonização pelos franceses criou no grande país da América do Norte a “Nova França”. A região foi posteriromente conquistada pelo reino britânico em expansão, onde a população manteve a cultura francesa. A solução, pacífica, foi um ato político de reconhecimento da autonomia política relativa, sob controle parcial do reino britânico. O que fez com que o Canadá não se alinhasse à guerra civil estadunidense, para a qual o povo foi ensejado a participar.

Pais da Confederação, 1864-1867, afirmaram a formação de uma nova nação, uma nova nacionalidade política, uma nova e poderosa nação entre as demais nações do mundo, uma grande potência individual (Forsey, p. 7), tendo obtido sucesso na manutenção da cultura, e as instituições das províncias federadas.

A “Constituição” canadense foi originariamente chamada de “Lei da América do Norte Britânica, renomeado de “Ato Constitucional” de 1867 – uma lei do parlamento britânico na forma estatutária, mas elaborado pelos próprios canadenses sem qualquer participação direta do governo britânico. Ainda assim, as emendas precisavam ser aprovadas pelo parlamento britânico, mesmo que este sempre aprovasse ao que lhe fora solicitado, de modo que este manteve uma atuação mais formal que efetiva.

Apesar do Canadá ter demonstrado alguma autonomia para manter suas relações exteriores, foi, depois da Conferência Imperial de 1926 que se reconheceu como “comunidades autônomas” o Canadá, juntamente com a Austrália, a Nova Zelândia, a África do Sul e Irlanda, na condição de não subordinadas ao Reino Unido em suas decisões domésticas ou na definição das suas relações exteriores. De modo que a partir de 1927 o Ato Constitucional poderia ser “repatriado”, para que todo processo de emenda também pudesse ser concluído no país.

Por dificuldades na negociação interna sobre a forma de se fazer emendas constitucionais, apenas em 1982, com aprovação de 9 províncias, a “nacionalização” do Ato Constitucional se consolidou. Trata-se basicamente com o mesmo texto de 1867. Todavia, vale salientar que este ato é apenas parte de toda “constituição” em funcionamento no país. Os demais textos constitucionais que estabelecem o formato do funcionamento do governo, como o “Ato do Parlamento do Canadá”, as leis eleitorais, federal e provinciais. Tanto o Ato Constitucional quando suas ementas são feitas por acordos entre províncias e governo federal. O “texto constitucional” canadense é composto pelo “Ato Constitucional” de 1982 e outros 25 documentos primários.

Uma das importantes novidades do “Ato Constitucional” de 1982 foi a configuração de quatro procedimentos legislativos para aprovação de uma emenda constitucional, sendo cada fórmula procedural cobrindo assuntos e áreas específicas. Além disso, também foi criada uma “Carta Canadense de Direitos e Liberdades”, com direitos democráticos, liberdades fundamentais, liberdade de locomoção e de mobilidade social, direitos ligados ao devido processo legal, direitos de igualdade, idiomas oficiais e, em certas circunstâncias, direitos às minorias de educação no seu idioma.

Federalismo

A melhor maneira encontrada pelos chamados Pais da Confederação, para endereçar as controvérsias existentes no vasto território, com populações isoladas pela extensão e demais barreiras geográficas, com idiomas e interesses diferentes, ao mesmo tempo receosos todos de uma invasão dos EUA, foi uma Federação, consolidada pela “Lei da América do Norte Britânica” (British North America Act),. A solução para trazer todos a um mesmo sistema, mantendo as autonomias locais e culturais.

Foram 4 as Províncias Originárias da Confederação reconhecida em 1867, Nova Scotia, Nova Brunswick, Ontário e Quebec. A forma de Estado do Canadá é o federalismo, com mecanismos de auto-governo das 10 províncias dos 3 territórios. Cada província tem seu sistema de auto-governo, com representações em relação a todos os poderes. União tem um poder bastante centralizado, desenvolvido pelos Chefes de Governo, de Estado, e o Parlamento. As províncias têm seus parlamentos e um governor-lieutenant que corresponde ao Governador Geral no âmbito provincial.

Os textos constitucionais garantiram a manutenção do sistema de civil Law para a província de Quebec, enquanto as demais províncias têm o common Law, e o uso do inglês e do francês como idiomas oficiais.

Monarquia Constitucional

O Canadá é uma monarquia constitucional, tendo como chefe de Estado a Rainha, que é a mesma para a Grã-Bretanha, Austrália e Nova Zelândia. Todos os atos do governo são feitos em nome da rainha, cuja representação é realizada pela figura do(a) Governador(a) Geral exceto quando a Rainha está em solo canadense. O(a) Governador(a) Geral deve ser um(a) canadense, indicado(a) pela Rainha que trabalha com o Primeiro Ministro do Canadá.

Chefia de governo

O sistema de governo do Canadá é o parlamentarismo, com uma personalidade angular que é o Primeiro Ministro, chefe de governo, indicado pelo partido que tem a maioria dos votos. O gabinete do poder executivo é composto pelo Governador-Geral e o Primeiro Ministro. É o gabinete que prepara os projetos de lei à Casa dos Comuns.

O gabinete é o único responsável por apresentar o projeto de orçamento, definição de gastos públicos ou estabelecer impostos, que não podem ser iniciados pela Casa dos Comuns, nem aumentá-los sem recomendação real em forma de mensagem ao Governador Geral. O senado não pode nem aumentar impostos ou orçamento. Mas ambas as casas do parlamento podem fazer uma moção para reduzir impostos ou gastos públicos que podem ser aprovados pela própria casa.

Entre os atos que pode a Casa dos Comuns tomar para manifestar desconfiança em relação aos dirigentes do executivo, estão a “moção de censura” ou a “moção de falta de confiança”, atos que podem levar a novas eleições nacionais. Os ministros do cabinet respondem e são acreditados pela Casa dos Comuns.

Parlamento – Democracia representativa

O Parlamento canadense é bicameral, dos quais fazem parte a Casa dos Comuns (House of Commons), com membros eleitos, e o Senado, com membros indicados. Casa dos Comuns, principal casa legislativa, é composta por 308 membros, de representação do povo das províncias, distribuídos proporcionalmente pelo número de habitantes, sendo: 106 para Ontario, 75 para Quebec, 36 para British Columbia, 28 para Alberta, 14 para Manitoba, 14 para Saskatchewan, 11 para Nova Scotia, 10 para New Brunswick, 7 para Newfoundland e Labrador, 4 para a Ilha Prince Edward, 1 Territórios do Noroeste e 1 para Nunavut e 1 ao Território de Yukon.

O líder do partido político que conquista nas urnas a maioria, simples, dos assentos da Casa dos Comuns, solicita ao Governador Geral para se tornar o Primeiro Ministro. O segundo partido mais votado assume a oposição, e tem um orador oficial em relação ao que é defendido pela situação. Ambos os partidos tem orçamento público destinado para realizar pesquisas, como forma de dar melhores condições à oposição para construir um sistema de contrapeso àqueles que assumem o poder. O Senado é composto por 105 membros, indicados pelo Governador Geral sob recomendação do Primeiro Ministro. O parlamento nacional tem competência legislativa para fazer leis sobre a paz, a ordem e a boa governança do país, com exceção daquelas exclusivas das legislaturas das províncias.

A Suprema Corte

Instituída pelo Parlamento em 1875 por delegação constitucional, a Suprema Corte do Canadá é composto por 9 juízes indicados pelo Governador Geral em coordenação com o Primeiro Ministro, que julgam aproximadamente 75-90 casos por ano, que chegam em regra após interposição de recursos da Corte Federal de Apelação (sede recursal da Corte Tributária do Canadá e da Corte Federal) e as Cortes de Apelação Provinciais (sede recursal das Cortes Superiores Recursais das províncias ou territórios que por sua vez respondem a recursos dos atos das Cortes Provinciais).

Por fim…

1. Não se pode compreender a igualdade social no Canadá sem obter dados do sistema tributário que provê a distribuição da renda no Canadá e a concentração da renda no Brasil. Os tributos sobre o consumo são baixíssimos, comparados ao Brasil, o que faz vários bens de consumo serem vendidos pela do preço metade do que custam no Brasil (como carro, eletrônicos, etc.), democratizando o acesso. De outra banda, a tributação sobre a renda é bem mais pesada, desde a isenção podendo chegar até 55% da renda para os mais ricos – enquanto nosso sistema brasileiro vai até 27,5%, ou seja, a metade.

2. O que o sistema canadense ensina com propriedade é o valor da tradição, pois, mesmo um sistema monárquico arcaico pode ter resultados de vanguarda quando há vontade de concretizar, cultura de planejar e comprometimento e compromisso com o que é coletivo e comum. As indicações governamentais se adaptam aos tempos conforme a meritocracia, em detrimento ao patrimonialismo – que reina entre nós brasileiros (ou latinos). A “adultidade” de que Kant falava, ao relacionar “esclarecimento” ao sapere aude, é possível, e sem paternalismos. De forma muito empírica, ouso dizer que os cidadãos são tratados como adultos e se confia que farão o correto.

FORSEY, Eugene. How Canadians Govern Themselves. 7. Ed. Ottawa,1980.

PS: O texto é uma síntese de notas pessoais obtidas durante "Democracy Study Tour 2011", 31 janeiro a 4 de fevereiro 2011, realizado em Ottawa, com patrocínio do Bureau Canadense para Educação Internacional e Departamento de Relações Exteriores e Comércio Internacional.


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

BRASIL É CONDENADO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO DA GUERRILHA DO ARAGUAIA



A condenação mais recente do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos ocorreu por conta do caso da Guerrilha do Araguaia. A sentença data de 25 de novembro de 2010, e, entre outros sérios impactos no ordenamento jurídico nacional e na vida política brasileira, condena o Brasil a promover a investigação e julgamento daqueles envolvidos com o caso, tipificado pela corte como crise de lesa-humanidade. Abaixo alguns trechos da decisão, seguido do parágrafo e página onde foram transcritos.

“Segundo a Comissão Especial[de Mortos e Desaparecidos Políticos], cerca de 50 mil pessoas teriam sido detidas somente nos primeiros meses da ditadura; cerca de 20 mil presos foram submetidos a torturas; há 354 mortos e desaparecidos políticos; 130 pessoas foram expulsas do país; 4.862 pessoas tiveram seus mandatos e direitos políticos suspensos, e centenas de camponeses foram assassinados” (Sentença,§87, p. 32).


Dada a interpretação que o Estado conferiu a essa norma, além da falta de investigação e sanção penal, nem os familiares das vítimas, nem a sociedade brasileira puderam conhecer a verdade sobre o ocorrido. A aplicação de leis de anistia a perpetradores de graves violações de direitos humanos é contrária às obrigações estabelecidas na Convenção e à jurisprudência da Corte Interamericana. §127, P. 47


Do mesmo modo, nenhuma lei ou norma de direito interno, como as disposições de anistia, as regras de prescrição e outras excludentes de responsabilidade, pode impedir que um Estado cumpra essa obrigação, especialmente quando se trate de graves violações de direitos humanos que constituam crimes contra a humanidade, como os desaparecimentos forçados do presente caso, pois esses crimes são inanistiáveis e imprescritíveis. §127, p. 47 e 48.


As anistias ou figuras análogas foram um dos obstáculos alegados por alguns Estados para investigar e, quando fosse o caso, punir os responsáveis por violações graves aos direitos humanos197. Este Tribunal, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os órgãos das Nações Unidas e outros organismos universais e regionais de proteção dos direitos humanos pronunciaram-se sobre a incompatibilidade das leis de anistia, relativas a graves violações de direitos humanos com o Direito Internacional e as obrigações internacionais dos Estados.
§142, p. 52.


para efeitos do presente caso, o Tribunal reitera que “são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”. P. 64§171


Adicionalmente, ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e eventual sanção dos possíveis responsáveis por violações continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forçados, o Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno, consagrada no artigo 2 da Convenção Americana. §172, p. 64

corresponde ao Estado, em conformidade com o artigo 2 desse instrumento, adotar todas as medidas para deixar sem efeito as disposições legais que poderiam contrariá-lo, como são as que impedem a investigação de graves violações de direitos humanos, uma vez que conduzem à falta de proteção das vítimas e à perpetuação da impunidade, além de impedir que as vítimas e seus familiares conheçam a verdade dos fatos. §173, p. 64.

174. Dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana, as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos. Em consequência, não podem continuar a representar um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, nem podem ter igual ou similar impacto sobre outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. §174,p. 64

O Poder Judiciário, nesse sentido, está internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no marco de suas respectivas competências e das regulamentações processuais correspondentes. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não somente o tratado, mas também a interpretação que a ele conferiu a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana. §176, p. 64 e 65.

No presente caso, o Tribunal observa que não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento. §177, P. 66.

Íntegra do parágrafo

177. No presente caso, o Tribunal observa que não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento. O Tribunal estima oportuno recordar que a obrigação de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas corresponde a um princípio básico do direito sobre a responsabilidade internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e nacional, segundo o qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais internacionais de boa-fé (pacta sunt servanda). Como já salientou esta Corte e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais. As obrigações convencionais dos Estados Parte vinculam todos sus poderes e órgãos, os quais devem garantir o cumprimento das disposições convencionais e seus efeitos próprios (effet utile) no plano de seu direito interno254. P. 66

1. Obrigação de investigar os fatos, julgar e, se for o caso, punir os responsáveis

253. A Comissão solicitou à Corte que ordene ao Estado realizar, por meio da jurisdição de direito comum, de uma investigação judicial completa, efetiva e imparcial dos desaparecimentos forçados do presente caso e da execução da senhora Petit da Silva, com base no devido processo legal, a fim de identificar os responsáveis intelectuais e materiais dessas violações e sancioná-los criminalmente. Para isso, o Estado deve levar em consideração que esses crimes são imprescritíveis e não podem ser objeto de anistias. Por esse motivo, o Brasil deve adotar todas as medidas que sejam necessárias para assegurar que a Lei de Anistia e as leis de sigilo não continuem a representar um obstáculo para a persecução penal contra graves violações de direitos humanos. Além disso, solicitou que se publiquem os resultados dessa investigação, para que a sociedade brasileira possa conhecer esse período de sua história. §253, P. 95.

O Estado deve remover todos os obstáculos de facto e de iure, que mantenham a impunidade dos fatos, como aqueles relativos à Lei de Anistia. Adicionalmente, solicitaram à Corte que ordene ao Estado que: a) sejam julgados na justiça ordinária todos os processos que se refiram a graves violações de direitos humanos; b) os familiares das vítimas tenham pleno acesso e legitimação para atuar em todas as etapas processuais, em conformidade com as leis internas e a Convenção Americana, e c) os resultados das investigações sejam divulgados pública e amplamente, para que a sociedade brasileira os conheça. §254, p. 95


A Comissão solicitou à Corte que ordene ao Estado que disponha a publicação da Sentença, que eventualmente pronuncie, em um meio de circulação nacional. §270, p. 100

3. Garantias de não repetição
i. Educação em direitos humanos nas Forças Armadas

281. A Comissão solicitou à Corte que ordene ao Estado a implementação, em um prazo razoável, de programas de educação em direitos humanos permanentes dentro das Forças Armadas, em todos os níveis hierárquicos, os quais devem incluir o presente caso e os instrumentos regionais e internacionais de direitos humanos, especificamente os relacionados com o desaparecimento forçado de pessoas e a tortura. §281, P. 103

Como parte dessa formação, deverá ser incluída a presente Sentença, a jurisprudência da Corte Interamericana a respeito do desaparecimento forçado de pessoas, de outras graves violações aos direitos humanos e à jurisdição penal militar, bem como às obrigações internacionais de direitos humanos do Brasil, derivadas dos tratados nos quais é Parte. §283, p. 103.

DOS PONTOS RESOLUTIVOS –

3. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.

4. O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 101 a 125 da mesma.


"5. O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180"

E

"9. O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença. "

"13. O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 277 da presente Sentença."

"31. É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará em um novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo para acabar com o círculo de impunidade no Brasil. É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de modo que a imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer tempo serão punidas".

Para acessar a íntegra da decisão, no site da Corte:

http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf


quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O PENSAMENTO POLÍTICO-PACIFISTA DE ÉRICO VERÍSSIMO EM 'O PRISIONEIRO'

Direito e Literatura - O prisioneiro from Unisinos on Vimeo.



52° Programa - Obra: O prisioneiro, de Érico Veríssimo - Exibição: 18/10/2009 - Apresentação: Prof. Dr. Lenio Luiz Streck (IHJ) Convidados:Prof. Me. Gustavo Oliveira Vieira (Direito/Unifra e Unisinos)Profª. Drª. Maria da Glória Bordini (Letras/Ufrgs). Edições disponíveis em: http://www.unisinos.br/direitoeliteratura/

Agradeço, já de início, pela oportunidade de ter participado deste qualificado programa/projeto, ao professor Lenio Streck e ao seu produtor, André Karam Trindade.


Gustavo Oliveira Vieira

- Você não acredita então na possibilidade duma paz definitiva?
- Não, enquanto a Engrenagem que aí está continuar funcionando. E fique sabendo também, meu amigo, que desejo apaixonadamente a paz, sim, não a paz dum cemitério atômico. (o tenente e a professora, p. 205)


Neste rápido ensaio, eu gostaria de comentar a obra O Prisioneiro de Érico Veríssimo (1905-1975). Escrito em 1967, não diz expressamente o nome dos países envolvidos, mas é evidente que trata da guerra dos EUA no Vietnã. E a dedicatória diz muito a respeito do contexto do livro: Aos meus netos Michael, Paul e Edward dedico com amor este livro, que me doeu escrever. Aos netos estadunidenses, Érico traz a tona uma crítica sofisticada sobre o belicismo estadunidense, sobre a equivocada pretensão de superioridade da potência ocidental, ao racismo, entre outros temas permite defini-lo como a crítica de um pacifista à guerra do Vietnã.

Nesse sentido, a relação interdiscilinar mais adequada para o direito é com relação ao Direito Internacional, sinônimo de Direito Internacional da Paz. Tanto nos seus sub-ramos do Direito Internacional Humanitário, quanto o Direito Internacional dos Direitos Humanos emergem dos acontecimentos no país do sudeste da Ásia. Entre os temas presentes de maneira importante, estão: a guerra, o diálogo intercultural, a pretensão de superioridade cultural do ocidente, as religiões, o terrorismo, a tortura, o racismo e o anti-semitismo.

Os personagens principais da trama são: o coronel, o major, o tenente, o sargento, o médico, a professora e o prisioneiro propriamente dito. Os militares são todos da grande potência, deslocados ao exterior e hospedados no mesmo hotel. Cada um com seu drama pessoal, que de alguma forma se enlaça às críticas.

O coronel é o quem chefia a atividade militar, na cidade onde tudo acontece. Filho de um religioso pastor e casado com um modelo de esposa para os seus referenciais religiosos, que é uma mescla de mãe e irmã. Dormem em camas separadas, e sem vida sexual, acaba envolvendo-se com outra mulher, divorciada e com filhos – comportamento que gera um peso moral ao coronel que é rechaçado veementemente pelo pai. Mentalmente elabora cartas a sua filha. É a voz do pentágono nos diálogos com o major.

O major, por sua vez, gordo, está separado pelo fato de sua esposa não suportar a intromissão da sogra. O que o conduz a chafurdar em ambientes e excessos hedonistas. Exprime olhar crítico sobre a atuação da potencia e o status civilizatório.

Já o drama íntimo do tenente tem papel central na novela. Filho de uma mãe branca e pai negro, ele sofre com o racismo de todos os lados, pelo pai por ser negro, a mãe pelo fato de ter se casado com um negro foi excluída do seu meio, e o próprio tenente tem um drama íntimo de querer ser branco. Até mesmo seu filho recebe uma pedrada ao freqüentar escolha de integração inter-racial. Racismo, kkk, a morte da prostituta K. por força de ação terrorista, suicídio do pai e a tortura, tudo isso de alguma forma amenizado nas conversas com a professora.

A professora sofreu violência sexual por um grupo de militares nativos do pequeno país do sudeste asiático. E hoje mantém uma instituição voltada para meninas. É a voz crítica, do pacifismo e da serenidade.

O texto é composto por três grandes diálogos, entre o coronel e o major, o tenente e a professora, e o tenente e o médico, somado às reminiscências dos personagens que de alguma forma justificam suas decisões. Os dramas familiares do coronel e do major, a questão do racismo nas principais marcas da vida do tenente, o histórico de violência sexual da professora e o sofrimento nos campos de concentração causado pelo anti-semitismo nazista sobre o médico judeu.

Para se ter uma idéia da qualidade e profundidade dos elementos explorados, abaixo alguns trechos das conversas entre o tenente e a provessora

CONVERSAS ENTRE O TENENTE E A PROFESSORA


A democracia – “deusa de mil faces cuja fisionomia verdadeira ninguém nunca viu” (p. 203)
A guerra
“- É possível que os seus bravos fuzileiros acreditem sinceramente em que estão com a causa da justiça e da democracia. A lavagem de cérebro entre os comunistas é drástica, violenta e impiedosa. Mas a lavagem de cérebro nos países capitalistas tem sido suave, lenta e imperceptível. Começou há mais de um século e condicionou a maneira de pensar e sentir de suas populações, preparando-as até para coonestar o ‘genocídio justificado’, a aceitar as ‘guerras santas’. Mata-se em nome de Deus, em nome da pátria e em nome da Democracia, essa deusa de mil faces cuja fisionomia verdadeira ninguém nunca viu” (a professora, p. 203)

Guerra fria. “Sejamos honestos – continuou a professora . – Nem os países capitalistas nem os comunistas estão fundamentalmente interessados na paz. O que buscam mesmo é a própria hegemonia militar nesse perigoso jogo pelo domínio mundial. O que querem, acima de tudo, é reforçar suas zonas de segurança, ampliar seus mercados, conquistar mais fontes de riqueza e de matérias-primas. Para isso precisam de soldados, de armas e de slogans. É nesse ponto que entra em cena a propaganda guerreira servida pela subversão semântica” (a professora, p. 204).
Ao falar sobre Karl Von Clauzewitz, o general prussiano que escreveu sobre estratégia militar, partidário da guerra total. “Foi ele quem afirmou que a guerra é a continuação da política. Pois eu tenho uma correção a fazer (perdoe-me a presunção) nessa frase famosa. Acho que a guerra é a continuação do comércio entre as nações. A diplomacia, instrumento da política externa, é apenas uma frágil e formal ponte de papel estendida sobre o estreito rio dos interregnos de paz. Às vezes é também espionagem. Outras, o minuete que precede a hecatombe...” (a professora, p. 208)
“Aqui combatemos os que convencionamos chamar de vermelhos. Mas não serão, todas essas revoltas, lá e aqui, fragmentos da mesma luta provocada pela incurável estupidez humana? O desconcertante é que trinta por cento dos soldados de nossa tropa nesta frente de guerra são pretos. Isso tem sentido?” (o tenente, p. 220)

O racismo.
“O pastor de nossa paróquia disse uma vez num sermão dominical que o corpo é a casa da alma e por isso deve ser respeitado. Ora, eu acho que no caso dos pretos, o corpo é a penitenciária de seu espírito. E quem tem a chave que nos poderá libertar? Os brancos?” (o tenente - p. 220).

A palavra:
“Na minha opinião (permita-me uma metáfora) as palavras são as sombras das coisas, das pessoas, dos fatos e das idéias que representam. A fidelidade da sobra com relação ao objeto...quero dizer: o tamanho, a forma, a intensidade, depende da posição do foco de luz, isto é, o temperamento da pessoa e sua maior ou menor habilidade no uso da linguagem. Falei claro?” (a professora - p.212)

Deus: “A idéia da existência de Deus não tem impedido que os homens, através de milênios, se tenham matado em guerras brutais. O importante, me parece, não é temer a Deus mas amarem-se os homens uns aos outros... ou pelo menos não se odiarem tanto, a ponto de recorrerem à violência para resolver problemas de coexistência” (a professora, p. 208 e 209).

Vários temas podem ser relacionados a esta qualificada obra da literatura:
1. Crítica à pretensão de superioridade cultural do ocidente
2. Crítica à Guerra.
3. Crítica ao belicismo estadunidense e ao terrorismo
4. Crítica às religiões e aos fanatismos.
5. Crítica à modernidade.
6. Crítica aos totalitarismos de toda espécie
7. Crítica ao racismo e ao anti-semitismo

Apesar do título do livro fazer uma menção clara ao prisioneiro que é morto durante as torturas perpetradas pelo sargento, todos na trama são, de alguma forma, prisioneiros. Trata-se de uma crítica à expectativa de liberdade, o grande lema da superpotência americana. O prisioneiro é a antítese da liberdade. A nação da liberdade é um mecanismo de aprisionamento. Ao invés de todos serem livres, todos são, de alguma forma ou de outra, prisioneiros.

VERÍSSIMO, Érico. O Prisioneiro. Porto Alegre: Globo, 1978.