segunda-feira, 15 de março de 2010

O TRATADO DE ERRADICAÇÃO DAS MINAS TERRESTRES COMPLETA ONZE ANOS DA SUA ENTRADA EM VIGOR

Foto de Tim Grant, Angola 1997

Gustavo Oliveira Vieira

A Convenção Sobre a Proibição do Uso, Armazenamento, Produção e Comércio de Minas Antipessoal e sobre sua Destruição, conhecido como Tratado de Ottawa, que prevê a erradicação total das minas antipessoal foi aberto para assinaturas em dezembro de 1997 e entrou em vigor em 1º de março de 1999, fechando onze anos este mês. Apesar dos reconhecidos avanços, muitos desafios persistem.

As minas terrestres antipessoal são armas que matam e flagelam indiscriminadamente, durante e após os conflitos armados. Uma mina não diferencia o passo de um soldado ou de uma criança, assim como não reconhece o advento de um tratado de paz. Tendo sido utilizadas em mais de 100 países pelo planeta, sendo a maioria países localizados em regiões pobres, e, produzida por 50 Estados, as minas antipessoal chegaram a gerar uma vítima a cada vinte e dois minutos no mundo, o que provocou uma mobilização maciça da sociedade civil, organizações internacionais e representantes de Estado, culminando em um tratado internacional sobre a destruição dos estoques, proibição do uso, armazenamento, produção e comércio de minas antipessoal, incluindo a obrigação de cooperação internacional e assistência às vítimas.

Com a adoção do texto do Tratado de Ottawa, a coalizão de Organizações Não-Governamentais internacionais que capitaneava a participação da sociedade civil internacional organizada, a Campanha Internacional pela Erradicação das Minas Terrestres (ICBL da sigla em inglês) foi co-laureada com o prêmio Nobel da Paz de 1997, juntamente com sua coordenadora, a ativista estadunidense Jody Williams. Apesar de apenas os Estados poderem adotar o texto de um tratado e se tornarem partes do mesmo, a ICBL é que foi laureada, por ter se considerada fundamental além de inovadora a sua participação. Com isso, o movimento antiminas gerou um case internacional amplamente estudado, chegando a ser considerado um modelo de governança mundial.

Ao longo dos últimos 11 anos, a universalização do Tratado de Ottawa alcançou 156 Estados Partes, que já destruíram perto de 50 milhões de minas antipessoal mantidos em estoque pelos governos, muitos pararam a produção, o comércio e passaram a assistir as vítimas destes artefatos bélicos indiscriminados. Mais de um bilhão de metros quadrados já foram limpos do flagelo provocado pelas minas terrestres. O padrão em que os 156 Estados tem implementado o Tratado é bastante satisfatório.

Mais do que isso, os autores de Direito Internacional Humanitário e advogados do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Peter Herby e Kettheen Lawand, defendem a hipótese de ter o Tratado de Ottawa se tornado um costume internacional, pois mesmo os Estados que não são partes do tratado estão cumprindo com suas obrigações por conta do nível de estigmatização da arma. Há Estados não-Partes que inclusive submetem um informe anual de transparência, requerido pelo artigo 7º do Tratado de Ottawa.

Os EUA, por exemplo, apesar de não serem partes do Tratado de Ottawa não usam minas antipessoal desde 1991, não exportam desde 1992 e não produzem desde 1997. Recentemente o Departamento de Estado anunciou que o tema está sendo revisado, assim como os EUA se fizeram presentes, na condição de observadores, à Cúpula de Cartagena realizada na Colômbia em dezembro de 2009, que foi a 10ª Conferência dos Estados Partes da Convenção de Ottawa e Segunda Conferência de Exame do Tratado.

Nos últimos anos, apenas Rússia, Índia, Paquistão e Mianmar/Burma é que utilizaram minas. No último ano só a Rússia, além de alguns atores armados não-estatais. Com a destruição dos estoques dos governos, a redução do uso por atores não-estatais também reduziu significativamente. E apesar dos avanços, mais de dez países ainda resguardam condições para produzirem minas antipessoal e os países com maiores estoques de minas ainda não são Partes do Tratado, como EUA, China, Rússia, Índia, Paquistão, Coréia do Norte, Irã, entre outros.

A entrada em vigor e o nível de implementação do Tratado de Ottawa evidenciam um modelo de governança mundial, expondo a possibilidade de representantes de Estados, da sociedade civil e de organizações internacionais trabalharem juntos em favor do atendimento a demandas que dizem respeito à própria humanidade mesmo em temas sensíveis como a segurança e o desarmamento.

Para mais informações:
http://www.icbl.org
Para visualizar a Carta da Campanha Brasileira Contra Minas Terrestres e Bombas Cluster para o Embaixador dos EUA no Brasil : http://www.porumbrasilhumanitario.org
http://www.gichd.ch

quinta-feira, 11 de março de 2010

MAIS VEREADORES, MAIS DEMOCRACIA? A ADIN 4307


Não tenho dúvidas de que o STF acertou, por enquanto, na decisão sobre a Adin 4307. Texto abaixo reproduzido do Informativo 577 do STF. É uma decisão que demonstra a necessidade de regras contra-majoritárias via jurisdição constitucional.

"REFERENDO EM MED. CAUT. EM ADI N. 4.307-DF
RELATORA : MIN. CÁRMEN LÚCIA
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 58/2009. ALTERAÇÃO NA COMPOSIÇÃO DOS LIMITES MÁXIMOS DAS CÂMARAS MUNICIPAIS. ART. 29, INC. IV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. RETROAÇÃO DE EFEITOS À ELEIÇÃO DE 2008 (ART. 3º, INC. I). POSSE DE VEREADORES. VEDADA APLICAÇÃO DA REGRA À ELEIÇÃO QUE OCORRA ATÉ UM ANO APÓS O INÍCIO DE SUA VIGÊNCIA: ART. 16 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. MEDIDA CAUTELAR REFERENDADA, COM EFEITOS ‘EX TUNC’, PARA SUSTAR OS EFEITOS DO INCISO I DO ART. 3º DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 58, DE 23.9.2009, ATÉ O JULGAMENTO DE MÉRITO DA PRESENTE AÇÃO.
1. Cabimento de ação direta de inconstitucionalidade para questionar norma constante de Emenda Constitucional. Precedentes.
2. Norma que determina a retroação dos efeitos das regras constitucionais de composição das Câmaras Municipais em pleito ocorrido e encerrado afronta a garantia do pleno exercício da cidadania popular (arts. 1º, parágrafo único e 14 da Constituição) e o princípio da segurança jurídica.
3. Os eleitos pelos cidadãos foram diplomados pela justiça eleitoral até 18.12.2009 e tomaram posse em 2009. Posse de suplentes para legislatura em curso, em relação a eleição finda e acabada, descumpre o princípio democrático da soberania popular.
4. Impossibilidade de compatibilizar a posse do suplente não eleito pelo sufrágio secreto e universal: ato que caracteriza verdadeira nomeação e não eleição. O voto é instrumento da democracia construída pelo cidadão: impossibilidade de afronta a essa expressão da liberdade de manifestação.
5. A aplicação da regra questionada importaria vereadores com mandatos diferentes o que afrontaria o processo político juridicamente perfeito.
6. Medida cautelar concedida referendada."


terça-feira, 2 de março de 2010

AUDIÊNCIAS PÚBLICAS, JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E DEMOCRACIA



Gustavo Oliveira Vieira

A lei que dispõe sobre o processo e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) e a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), Lei 9868 de 10 de novembro de 1998, introduziu ao nosso sistema de jurisdição constitucional, no caso, ao sistema de controle concentrado de constitucionalidade brasileiro, em seu artigo 9º §1º, a possibilidade do Ministro do STF, relator da ação, convocar audiência pública para “ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria”, no caso da ADIn, e artigo 20 §1º para ADC. Posteriormente, a lei que dispõe sobre o processo e julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a lei 9882 de 3 de dezembro de 1999, seguiu o mesmo caminho, no seu artigo 6º § 1º.

Levou 9 anos até a primeira audiência pública ser realizada, o que ocorreu no âmbito da ADIn 3510 sobre células tronco embrionárias. Nas palavras do Ministro Relator da ADIn 3510, ao apresentar seu voto em março de 2008: “Convencido de que a matéria centralmente versada nesta ação direta de inconstitucionalidade é de tal relevância social que passa a dizer respeito a toda a humanidade, determinei a realização de audiência pública, esse notável mecanismo constitucional de democracia direta ou participativa. O que fiz por provocação do mesmíssimo professor Cláudio Fonteles e com base no § 1º do artigo 9º da Lei nº 9.868/99, mesmo sabendo que se tratava de experiência inédita em toda a trajetória deste Supremo Tribunal Federal. Dando-se que,no dia e local adrede marcados, 22 (vinte e duas) das mais acatadas autoridades científicas brasileiras subiram à tribuna para discorrer sobre os temas agitados nas peças jurídicas de origem e desenvolvimento da ação constitucional que nos cabe julgar”.

Com objetivo de dar ênfase às palavras do relator, repito, a audiência pública como um “notável mecanismo constitucional de democracia direta ou participativa”. Democracia esta que se aproxima procedimentalmente muito mais do Legislativo e do Executivo, pelo processo eletivo de seus membros, do que do Judiciário. Não que exista uma blindagem democrática ao Judiciário, pois estão submetidos republicana e democraticamente a um sistema constitucional democrático, e seu dever é julgar conforme um direito engendrado democraticamente. Aliás, na concepção de Dworkin, julgar não é um poder, mas um dever.

Após a primeira experiência, com a ADIn 3510 (células tronco embrionárias), cujas audiências públicas ocorreram em 2007, a experiência foi seguida também para as ADPFs 54 (aborto/interrupção terapêutica da gravidez em caso de anencefalia), 101 (importação de pneus usados) e agora a ADPF 186 (ação afirmativa/cotas) cujas audiências públicas ocorrem entre os dias 3-5 de março de 2010. Será a quinta audiência pública realizada pelo STF.

Chamo a atenção à participação da Professora Jania Saldanha que estará presente na audiência pública a realizar-se no dia 5 de março de 2010 onde compartilhará a experiência das ações afirmativas na Universidade Federal de Santa Maria, às 15h. A professora Jania foi co-autora, juntamente com a professora Deisy Ventura, da resolução que estabeleceu o regime de quotas na UFSM.

O Direito corre o risco de perder o contato com a realidade social, condição que deve ser resolvida pela assunção da Democracia. O Direito, que se situa na tensão entre a facticidade e a validade, tem sua legitimação construída necessariamente em procedimentos democráticos (para lembrar Habermas). O risco de perder o contato com a realidade é ainda maior quando as decisões são tomadas num espaço tão distante – geográfica e metaforicamente. A abertura democrática criada pelas audiências públicas do STF é o reconhecimento dessa tensão entre Direito e Democracia, faticidade e validade, que a partir da vontade política dos cidadãos, seus especialistas, suas experiências e expectativas, fundamental para se buscar - metaforicamente – as respostas corretas (na acepção de Dworkin e Streck).