Por José Afonso da Silva –
advogado, constitucionalista, professor aposentado da Faculdade de Direito da USP, autor do “Curso de Direito Constitucional Positivo”, entre outras obras. (da Folha de S.Paulo, p. A3, 04/09/2010)
Volta e meia aparece alguém com a ideia de convocar uma Assembleia Constituinte sem que nem para quê. Agora, quer-se uma Constituinte para fazer as reformas políticas que o Congresso Nacional não realiza, reformas sobre as quais nem sequer existe consenso.
O raciocínio é este: se o Congresso não faz, convoquemos uma Assembleia Constituinte para fazer.
Pena que tenha sido a candidata Marina Silva a reinventar essa história, reafirmada nesta Folha (28/8, “Candidatos discutem nova Constituinte”, Poder): “Propus uma Constituinte exclusiva para que possamos realizar as reformas. Esta é a única forma de sairmos desse processo vicioso para um processo virtuoso”.
Que processo vicioso é esse, ela não disse. Será o fato de o Congresso não votar as reformas? E quem garante que a dita Assembleia exclusiva o fará? A ilustre candidata, sempre tão lúcida, não percebeu que uma tal Assembleia, se for mesmo Constituinte, não se limitará aos propósitos de sua convocação.
Se é exclusiva, não ficará adstrita às precondições e do desejo de destruí-la de sua convocação. Ela só vai servir aos interesses dos conservadores que nunca aceitaram a Constituição de 1988 e sempre estão engendrando algum meio para desfazer as conquistas populares que ela escolheu.
Não existe Assembleia Constituinte desvinculada do poder constituinte originário, que é o poder supremo que o povo tem de dar-se uma Constituição; energia capaz de organizar política e juridicamente a nação, por meio de Constituição.
Quando surge – ou seja, situação que reclama a criação de nova Constituição, que consagre nova ideia de direito, como ocorreu no Brasil no início dos anos 80, o espírito do povo se transmuda em vontade social e reivindica a retomada do seu direito fundamental primeiro, qual seja, o de se manifestar sobre o modo de existência política da nação pelo exercício do poder constituinte originário.
Sem uma ruptura da ordenação constitucional existente, não há o pressuposto essencial para a convocação de Constituinte alguma, exclusiva ou não. Quando existe uma Constituição legítima, como a Constituição de 1988, a ideia de convocar Constituinte não passa de jogo dos interesses contrariados por ela e do desejo de destruí-la.
O poder constituinte originário inseriu na Constituição os modos pelos quais ela poderia ser modificada: o processo de revisão (no art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), realizado e esgotado, e o processo de emendas (art. 60 da Constituição).
Este, hoje, é o único meio legítimo para reformar a Constituição. Fora dele é fraude, porque aí se prevê simples competência para modificar a Constituição existente, competência delegada exclusivamente ao Congresso Nacional pelo poder constituinte originário, que não o autorizou a transferi-la a outra entidade. Se o fizer, comete inconstitucionalidade insanável.
A Colômbia, em 1977, convocou Assembleia exclusiva para reforma de sua Constituição, que também disciplinava, por outra forma, o processo de alterações formais.
O ato da convocação daquela Assembleia foi declarado inconstitucional pela Sala Constitucional da então Corte Suprema colombiana. Essa é a solução que também se espera do Supremo Tribunal Federal, caso se efetive a convocação que as duas candidatas à Presidência da República suscitam.
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