“Posto que as pessoas, dentro de seus próprios limites, seguem regras coletivas, tais como costumes e direitos, vê-se então despontar uma vontade de que também se estabeleçam relações transnacionais sob uma forma jurídica. Atribui-se a uma vontade jurídica desse tipo, internacional e transnacional, atravessando, pois, os limites impostos por fronteiras, o surgimento dos primeiros impulsos e dos trabalhos pioneiros na área de um Direito supranacional. Desde o início, houve duas áreas de atuação nesse campo jurídico: um Direito Internacional Público, ou Direito das Gentes, que cuida das relações interestatais, e um Direito Internacional Privado, mais tarde, Direito Cosmopolítico, que regula as relações intersociais, ou seja, o comércio, o casamento entre cidadãos de países diferentes e o intercâmbio científico e cultural” (HÖFFE, 2005, p. 16).
O objetivo do presente texto é apresentar alguns comentários à obra “Democracia no Mundo de Hoje” de Otfried Höffe. Nascido em 1943, Höffe é professor catedrático da Universidade de Tübingen, e atualmente é um dos maiores estudiosos da obra de Immanuel Kant (1724-1804) – tendo publicado obra homônima em 1995, e com reconhecimento também no Direito a partir da publicação de “Justiça Política” (Politische Gerechtigkeit, 1987) – onde evidencia a inseparável relação da Política com a Justiça e o Direito, entre outras.
Em “A Democracia no Mundo de Hoje” (Democratie im Zeitalter der Globalisierung, 1999), publicado no Brasil em 2005 pela editora Martins Fontes, o autor alemão apresenta uma proposta de República Mundial complementar em relação aos Estados, por isso edificada a partir de dois princípios da organização política estruturantes, subsidiariedade e federalismo, cujo objetivo é garantir uma ordem jurídica global de justiça.
A tese parte do seguinte pressuposto: a necessidade de ação que não se atém a fronteiras entre os Estados. Quando a necessidade de ação se torna global, toma forma a idéia de um Estado igualmente global, uma ordem jurídica e estatal de natureza internacional que, graças à auto-organização enfática, se estabelece como democracia global, como República Mundial” (2005, p. 1), de modo que as soluções de problemas globais não fiquem entregues apenas “à forças de mercado (neoliberalismo) nem a uma evolução meramente contingente (teoria sistêmica), e muito menos a uma combinação dessas duas componentes” (ibid., p. 2).
A primeira parte do texto descerra os Desafios da Época, iniciando com a globalização complexa - “a globalização como crescimento e consolidação das relações sociais internacionais” (p. 6), num ambiente de novos atores e novos desafios que transcendem os limites estatais, exigindo nova forma de ato político que venha complementar o Estado, não substituí-lo. Höffe aponta o destino comum da humanidade em três dimensões: 1. Uma comunidade de violência multifacetada que usa o poder em detrimento do Direito num desserviço ao bem-estar humano (armamentismo, terrorismo, guerras, etc.); 2. À serviço da vida e do bem-estar também existe uma comunidade de cooperação que envolve grupos de pressão globais em favor dos direitos humanos (tribunais com competência mundial, responsabilização internacional dos Estados por violação dos direitos humanos, liberalização da economia, opinião pública mundial, etc.); 3. Por força do ônus da economia transnacional como o desemprego, danos ambientais formando uma comunidade de miséria e sofrimento (fome, pobreza, subdesenvolvimento).
Daí o autor parte a uma conclusão ou visões para o futuro. A forma para responder aos desafios da globalização aponta para “um imperativo moral a supremacia do direito e da justiça sobre a violência” (2005, p. 20) – imperativo universal do Direito, do Estado e da Democracia. “Ainda será necessário averiguar cm exatidão em que áreas de atuação urge uma ação global e que princípios deverão norteá-la. Nos três grupos de fenômenos, porém, já se delineam três áreas: (1) no intuito de se abolir a comunidade de violência, é imperativo que se instaure uma ordem global de direito e paz; (2) a comunidade de cooperação global carece de uma esfera de ação imparcial pautada pela justiça, abrangendo desde medidas contrárias a distorções de concorrência por parte dos Estados até a garantia de critérios sociais e ecológicos mínimos; (3) por último, a fome e a miséria lançam questionamentos acerca de justiça social, mas também de solidariedade global e de filantropia global” (2005, p. 22), propondo-se a pensar um ‘ainda-não’ possível de ser alcançado numa ordem global de paz.
Höffe desenvolve uma proposição elaborada a partir dos referenciais kantianos, retomando a cada desdobramento de sua proposta as três principais obras de Kant para a formação de uma ordem cosmopolita (À Paz Perpétua, A Doutrina do Direito e Idéia de uma História Universal de um Ponto de vista Cosmopolita), assim como os as críticas apresentadas ao projeto kantiano.
Ao construir a proposta de uma República Mundial, Höffe analisa as principais objeções até então apresentadas por diversos autores aos projetos teóricos existentes até então, sustentando com base nos princípios da subsidiariedade e do federalismo um sistema adequado à edificação de uma ordem jurídica mundial. Ademais, sua proposta é assentada em princípios de justiça e de legitimação pela democratização do sistema jurídico.
Höffe também oferece uma visão profunda sobre a filosofia kantiana e sua perspectiva cosmopolita sobre o Direito e a Paz, além de conferir pressupostos ao direito justo, debater sobre o direito intercultural e demais constructos do pacifismo jurídico, conforme lista de referências abaixo. “nenhum Estado pode viver sua própria história sem ser influenciado por todos os outros” (2005, p. 17). Vale a pena conferir!
REFERÊNCIAS E SUGESTÕES PARA CONSULTA:
HÖFFE, Otfried. A
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant.
HÖFFE, Otfried. Kant's cosmopolitan theory on law and peace. Cambridge: Cambridge, 2006. 254p.
HÖFFE, Otfried.
HÖFFE, Otfried. Derecho intercultural. Barcelona: Gedisa, 2001. 288p.
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