A condenação mais recente do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos ocorreu por conta do caso da Guerrilha do Araguaia. A sentença data de 25 de novembro de 2010, e, entre outros sérios impactos no ordenamento jurídico nacional e na vida política brasileira, condena o Brasil a promover a investigação e julgamento daqueles envolvidos com o caso, tipificado pela corte como crise de lesa-humanidade. Abaixo alguns trechos da decisão, seguido do parágrafo e página onde foram transcritos.
“Segundo a Comissão Especial[de Mortos e Desaparecidos Políticos], cerca de 50 mil pessoas teriam sido detidas somente nos primeiros meses da ditadura; cerca de 20 mil presos foram submetidos a torturas; há 354 mortos e desaparecidos políticos; 130 pessoas foram expulsas do país; 4.862 pessoas tiveram seus mandatos e direitos políticos suspensos, e centenas de camponeses foram assassinados” (Sentença,§87, p. 32).
Dada a interpretação que o Estado conferiu a essa norma, além da falta de investigação e sanção penal, nem os familiares das vítimas, nem a sociedade brasileira puderam conhecer a verdade sobre o ocorrido. A aplicação de leis de anistia a perpetradores de graves violações de direitos humanos é contrária às obrigações estabelecidas na Convenção e à jurisprudência da Corte Interamericana. §127, P. 47
Do mesmo modo, nenhuma lei ou norma de direito interno, como as disposições de anistia, as regras de prescrição e outras excludentes de responsabilidade, pode impedir que um Estado cumpra essa obrigação, especialmente quando se trate de graves violações de direitos humanos que constituam crimes contra a humanidade, como os desaparecimentos forçados do presente caso, pois esses crimes são inanistiáveis e imprescritíveis. §127, p. 47 e 48.
As anistias ou figuras análogas foram um dos obstáculos alegados por alguns Estados para investigar e, quando fosse o caso, punir os responsáveis por violações graves aos direitos humanos197. Este Tribunal, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os órgãos das Nações Unidas e outros organismos universais e regionais de proteção dos direitos humanos pronunciaram-se sobre a incompatibilidade das leis de anistia, relativas a graves violações de direitos humanos com o Direito Internacional e as obrigações internacionais dos Estados.
§142, p. 52.para efeitos do presente caso, o Tribunal reitera que “são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”. P. 64§171
Adicionalmente, ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e eventual sanção dos possíveis responsáveis por violações continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forçados, o Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno, consagrada no artigo 2 da Convenção Americana. §172, p. 64
corresponde ao Estado, em conformidade com o artigo 2 desse instrumento, adotar todas as medidas para deixar sem efeito as disposições legais que poderiam contrariá-lo, como são as que impedem a investigação de graves violações de direitos humanos, uma vez que conduzem à falta de proteção das vítimas e à perpetuação da impunidade, além de impedir que as vítimas e seus familiares conheçam a verdade dos fatos. §173, p. 64.
174. Dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana, as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos. Em consequência, não podem continuar a representar um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, nem podem ter igual ou similar impacto sobre outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. §174,p. 64
O Poder Judiciário, nesse sentido, está internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no marco de suas respectivas competências e das regulamentações processuais correspondentes. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não somente o tratado, mas também a interpretação que a ele conferiu a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana. §176, p. 64 e 65.
No presente caso, o Tribunal observa que não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento. §177, P. 66.
Íntegra do parágrafo
177. No presente caso, o Tribunal observa que não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento. O Tribunal estima oportuno recordar que a obrigação de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas corresponde a um princípio básico do direito sobre a responsabilidade internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e nacional, segundo o qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais internacionais de boa-fé (pacta sunt servanda). Como já salientou esta Corte e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais. As obrigações convencionais dos Estados Parte vinculam todos sus poderes e órgãos, os quais devem garantir o cumprimento das disposições convencionais e seus efeitos próprios (effet utile) no plano de seu direito interno254. P. 66
1. Obrigação de investigar os fatos, julgar e, se for o caso, punir os responsáveis
253. A Comissão solicitou à Corte que ordene ao Estado realizar, por meio da jurisdição de direito comum, de uma investigação judicial completa, efetiva e imparcial dos desaparecimentos forçados do presente caso e da execução da senhora Petit da Silva, com base no devido processo legal, a fim de identificar os responsáveis intelectuais e materiais dessas violações e sancioná-los criminalmente. Para isso, o Estado deve levar em consideração que esses crimes são imprescritíveis e não podem ser objeto de anistias. Por esse motivo, o Brasil deve adotar todas as medidas que sejam necessárias para assegurar que a Lei de Anistia e as leis de sigilo não continuem a representar um obstáculo para a persecução penal contra graves violações de direitos humanos. Além disso, solicitou que se publiquem os resultados dessa investigação, para que a sociedade brasileira possa conhecer esse período de sua história. §253, P. 95.
O Estado deve remover todos os obstáculos de facto e de iure, que mantenham a impunidade dos fatos, como aqueles relativos à Lei de Anistia. Adicionalmente, solicitaram à Corte que ordene ao Estado que: a) sejam julgados na justiça ordinária todos os processos que se refiram a graves violações de direitos humanos; b) os familiares das vítimas tenham pleno acesso e legitimação para atuar em todas as etapas processuais, em conformidade com as leis internas e a Convenção Americana, e c) os resultados das investigações sejam divulgados pública e amplamente, para que a sociedade brasileira os conheça. §254, p. 95
A Comissão solicitou à Corte que ordene ao Estado que disponha a publicação da Sentença, que eventualmente pronuncie, em um meio de circulação nacional. §270, p. 100
3. Garantias de não repetição
i. Educação em direitos humanos nas Forças Armadas
281. A Comissão solicitou à Corte que ordene ao Estado a implementação, em um prazo razoável, de programas de educação em direitos humanos permanentes dentro das Forças Armadas, em todos os níveis hierárquicos, os quais devem incluir o presente caso e os instrumentos regionais e internacionais de direitos humanos, especificamente os relacionados com o desaparecimento forçado de pessoas e a tortura. §281, P. 103
Como parte dessa formação, deverá ser incluída a presente Sentença, a jurisprudência da Corte Interamericana a respeito do desaparecimento forçado de pessoas, de outras graves violações aos direitos humanos e à jurisdição penal militar, bem como às obrigações internacionais de direitos humanos do Brasil, derivadas dos tratados nos quais é Parte. §283, p. 103.
DOS PONTOS RESOLUTIVOS –
3. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.
4. O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 101 a 125 da mesma.
"5. O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180"
E
"9. O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença. "
"13. O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 277 da presente Sentença."
"31. É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará em um novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo para acabar com o círculo de impunidade no Brasil. É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de modo que a imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer tempo serão punidas".
Para acessar a íntegra da decisão, no site da Corte:
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf